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NINGUÉM CONHECEU CARLINHOS




           O dia estava chuvoso. O céu parecia se pronunciar a respeito de toda aquela tristeza que a mulher sentia, lembrou-se das dores do parto, porém piores eram as dores causada pela morte do filho. “Bandido”, “ Vagabundo”, “ Criminoso” eram rótulos que conflitavam com os vocativos que a mãe tinha na memória “ Meu filho”, “ Meu Bebê”, “ Carlinhos”. Carlinhos tinha muitas coisas na cabeça, desde pequeno queria ir conhecer a Disneylândia, mas a mãe sempre falava que um dia o levaria, mas nunca levou. Pois nem sabia para que lado ficava e nem dinheiro tinha. 
            Começou a estudar, cadernos levados em pacote de arroz, a escola foi para ele diversão, ia para escola para comer e jogar bola; sentia-se feliz, entretanto não compreendia as exigências que a professora dele fazia. “Carlinhos, precisa ter notas boas!”- Assim a professora dizia. Não compreendia muito bem a desordem das letras, demorou a organizá-las, não compreendia porquê era ele que tinha que arrumar toda aquela bagunça, um dia informou a professora que tudo estava uma zona, a professora não gostou do termo, mandou-o à diretoria para aprender a falar de maneira educada. 
             O menino não conseguia compreender o somar, o multiplicar e o dividir, o subtrair conhecia muito bem, sabia sempre o que era o menos e as vezes se sentia menos que tudo que estava em sua volta. A patroa da mãe certa vez o disse, quando ele corria pela casa brincando com os patrõezinhos quebrou um vaso, o quanto ele era imprestável, ouviu pela primeira vez aos 8 anos que era um vagabundo nato, talvez se convenceu, ou a vida fez questão de convencê-lo de que era aquilo que aquela mulher dizia. 
            Um dia a professora apresentou na sala de aula a poesia de Drummond, o poema de sete faces, todo mundo riu da palavra gauche e todos ficaram atentos para ver o que significava. Carlinhos adorou a ideia daquele poeta ter o mesmo nome que ele, quis ser poeta também, começou a rabiscar nos cadernos algumas palavras que considerava bonitas, embora a letra era incodificável. Com o passar do tempo, as paredes da prisão se tornaram seu caderno, desde os 16 anos começou os pequenos delitos, a mãe indagava qual a necessidade daquilo, nada mais o menino ouvia, cada dia da semana Carlinhos tinha uma expressão diferente sem poesia alguma, talvez um verdadeiro gauche. 
       Carlinhos era acostumado a ver nas ruas a senhoras esconderem as bolsas, como que só sua presença fosse suficiente para furtá-las. Quando pequeno, tudo que sumia na sala de aula, a professora seriamente o perguntava se foi ele que havia roubado e ele dizia que não, que viu Pedrinho pegar. A professora não acreditava, dizia como era feio culpar o coleguinha, o objeto sumido se encontrava perdido na mochila de Pedrinho, mas o menino dizia não saber como lá foi parar, a professora deu um sermão geral, disse que era feio roubar e colocar a culpa em outra pessoa. Carlinhos foi por muito tempo chamado de ladrãozinho pelos colegas na escola, mas sem ter roubado nada de ninguém. Assumia uma culpa que insistiam em dizer que era dele, certa vez bateu em um colega, pois o chamava de ladrãozinho ao invés pelo nome. A professora chamou a mãe de Carlinhos, informou que era necessário melhor educá-lo, daquele tamanho já roubava. De tudo Carlinhos, já rapaz, lembrava. 
         Em sua última ida na cadeia, a mãe o visitou chorosa, perguntou o filho porquê tudo de ruim fazia, o jovem cabisbaixo pedia desculpas a mãe, pois de tudo de ruim o convenciam de que era ele o protagonista. Só estudou até o segundo ano do Ensino Médio, isto porquê a mãe tanto insistiu, pois queria desistir na oitava série do Ensino Fundamental. Depois de sair da cadeia foi para casa, a mãe preparou a refeição predileta, comunicou sorridente  que havia  conseguido um serviço para o filho, o jovem perguntou se lá não o tratariam como ladrão, já que  assim foi em todos os outros empregos. A mãe reafirmou que não, pois o proprietário da empresa já foi preso várias vezes e ninguém chamava ele de ladrão ou bandido.
        No primeiro dia de trabalho vestiu o uniforme, combinou com a mãe de almoçar com ela, o serviço era tranquilo, tinha que carregar caixas para lá e para cá. Ver a solicitação de materiais e ver para onde eles deveriam ser levados. Ninguém o olhou esquisito, chegou sério para não dá intimidade, mas o primeiro sorriso o desarmou, o companheiro de trabalho se colocava  a disposição para explicar o que tinha que ser feito e como devia ser feito. Todos o olhava com olhos de gente que enxergava  gente, com o passar das horas o jovem estava sorrindo, cantando enquanto trabalhava, declamando os poemas de Drummond que tanto gostava de ler, depois de uma música sempre vinha um trecho do “Sentimento de Mundo”. 
          Na hora do almoço, chegou em casa de acordo com o combinado, contou a mãe como havia sido o primeiro dia, ela ria de alegria, o rapaz falava dos colegas e do tanto que eram pessoas bacanas. Ninguém o destratou, nem mesmo o dono da empresa que nem parecia ter passado pela cadeia. Comia e os olhos  anunciavam a alegria de ser tratado como era e não de acordo com as suspeitas ou por causa de algo que já fez, ele nem bem sabia o porquê havia feito  aquelas coisas. Retornou ao trabalho. Foi  uma tarde inesquecível e assim foi durante dois anos. 
        Certo dia, retornando no fim da tarde para casa, a polícia o surpreendia. Colocou-o no muro, revistou-lhe. Verificou se tinha ficha criminal, tinha, sentou-lhe o cassetete, um policial com voz ríspida dizia saber reconhecer bem um vagabundo. O rapaz chegou em casa ensanguentado, a mãe assustou e o jovem logo informou, “ pensaram que eu era vagabundo”. Combinou com a mãe de não voltar do trabalho sozinho, viria com alguém que viesse para o bairro. Assim vez. Mas, depois de uma semana, as coisas aconteceram. O jovem foi a um aniversário de um colega de trabalho em um barzinho em outro bairro, todos estavam sorridentes, curtindo um samba produzido por cantores daquele bairro. Ouviu-se tiros, correria, choros, sirenes. Carlinhos foi morto, a tarde era azul e já não se tinha mais desejos, ninguém sabia de onde vieram os disparos, ninguém viu quem atirou, restava apenas a tristeza e o sangue derramado que não se misturava a nada, antes de morrer, Carlinhos a si dizia: “ Meu Deus, porque me abandonaste/ se sabia que eu não era Deus/ se sabias que eu era fraco.” E ainda tinha aquela vontade de ser Carlos Drummond de Andrade.

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