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MALDIÇÃO BRANCA DO 20 DE NOVEMBRO


     Meu corpo até arrepia de contar-lhes sobre isto, mas enfim, eu posso até morrer logo após este relato. Foi neste ano, o céu já amanheceu estranho, nem um pardal voava ou cantava, apenas aquela multidão de pássaros brancos, estilo pomba da paz, cobriam tudo. A Lalinha só pela manhã matou uns 20 que davam o ar da graça na janela de casa, eram todos iguais, não via beleza alguma neles, era medonhos, tinha olhares de certeza sobre tudo que sobrevoavam, parecia até a colonização, mas era e não era.
Resolvi acender a vela para o Ori, proteção, meus lábios tamboreiavam algumas letras, no instante a passarada voava como se tivessem crianças- espíritos correndo atrás. O sossego veio, Lalinha já havia garantido a refeição do mês todo, bichinha estranha, lambia as patas de satisfação e implicava com aquilo que eu não via por ter acabado com a sua diversão. O céu continuava branco, até parecia o cérebro da sociedade, era assustador. Telefonemas, e-mails, textões na internet pessoas... era todo mundo querendo dá palpite na consciência que nunca exerceu, mas na rede social a maldição também se manifestou, pois sabe como anda os avanços tecnológicos, se maldição manifesta em plantação ninguém percebe direito, nem se o feijão chegar a 30 reais o pacote, não é maldição, seria inflação ou esquema político.
     Na rede social uma multidão de “gente morta o ano inteiro”, não as pessoas negras exterminadas no genocídio, retornaram a vida no dia 20 de novembro para manifestar sobre a “consciência negra” ou contra ela. Corri e tranquei as portas de casa, liguei para os amigos, peguei a gata no terreiro e coloquei dentro de casa para modo de ser protegida, mas a bicha não largou os pássaros, tive que carregar as carcaças, pois senão a criatura ficava ao léu, exposta. Então, começou todo a horror, inúmeros discursos, pessoas brancas sendo aplaudidas por falar o que sempre foi dito por pessoas negras ao longo da história, enquanto outros discursos levantavam a bandeira da consciência humana desferindo aos montes o discurso de democracia e fantasiadas de Morgam Freeman, blackface ideológico. A batalha discursiva se iniciava, pessoas brancas não compreendia que apoiar a luta negra era para além dos holofotes, likes ou daquela data. E desde lá ainda ecoa, gente postando “coisa de preto”, ainda sem tirar das gavetas do imaginário aquelas “coisas de branco” daqueles tempos coloniais que imperam até hoje promovendo desigualdades. Resolvi desligar o wifi, aguardar instruções para que fosse feito o resgate do dia em que consciência negra se torna tipo “data de aniversário” de algo que é feito 24 horas por dia. Ainda estou aguardando o código morse informando a democracia racial. Enquanto isto, a Lalinha vai triturando os ossos ...

Juliana Costa 26/11/2017 JF/MG 





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