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QUASE IGUAIS


Chegou à beira do rio e se viu, assustou-se. Aquela imagem era ela mesma, entretanto aquela pele não era. Chorou de desespero. Despertou coração acelerado, que pesadelo era aquele? Levantou-se, descalça, foi até a cozinha tomar um copo dágua, preferiu tomá-lo com olhos fechados, traumatizada com o pesadelo, não queria ver a própria imagem refletida na água que iria beber. Retornou para cama, o cansaço do dia anterior foi superado pelo medo, ligou a televisão para distrair, quem sabe desmaiasse de modo que impedisse qualquer sonho ou pesadelo, queria desligar a mente. O sono fugiu correndo igual criança, a mulher começou a refletir sobre o que havia visto. Orou a Deus que os seus pais ensinaram-na a amar desde pequena, o terço no lado da cama foi solicitado, o salmo decorado era o modo de blindar a alma. O rosto que viu no reflexo no rio que atravessava seus sonhos ficou mais nítido na lembrança, chorou, não era um demônio, era uma mulher que não conhecia e que o seu corpo refletia naquelas águas. Adormeceu.
O despertador alvoroçado gritou as horas. Acordou como quem tivesse participado de uma luta a noite inteira, talvez seja isto o entendimento, uma luta de ideias que pode durar séculos. Decidiu tomar o café da manhã no trabalho, professora universitária, fim de ano letivo: provas, bancas de processos seletivos e defesas de teses ou dissertações, seu humor era afetado pelo cansaço, mas amava a profissão. Ao chegar à Universidade aguardava os colegas chegarem para a primeira atividade do dia, avaliação dos candidatos a uma vaga de professor na faculdade. Os candidatos tinham currículos maravilhosos o que não teria como se tornar um argumento para reprovação.  O resultado das provas de conhecimento específico foi de 100 candidatos, três restaram. Sendo que a maior nota diferenciava das demais por décimos. A entrevista seria fundamental para definir quem ficaria com a vaga.
Os colegas chegaram, reuniram antes de chamar os candidatos para entrevista, um colega começou a louvar a capacidade de um dos candidatos, manifestou que o conhecia há anos, que estudou na Sorbonne e que forneceria ótimos contatos para a faculdade, todos ficaram surpreendidos. A conversa girou em torno da necessidade de aprovação do melhor profissional para instituição, sendo que a primeira candidata não estudou na Sorbonne, mas tinha um currículo impecável, e o candidato formado na Sorbonne ficou em terceira colocação. Um colega fervoroso manifestou que provas são métodos de avaliação que não conseguem medir o conhecimento de ninguém e que o rapaz pode ter ficado nervoso e não conseguiu dá o melhor de si. A mulher desgastada pela insônia que surgiu após o pesadelo manifestou que realmente, nunca considerou uma prova como algo justo, mas foi este o modelo de avaliação que a faculdade estabelecia e por ele que deveriam seguir sem relutância.
As entrevistas iniciaram. A primeira candidata provocou comentários entre os avaliadores, uma mulher de cabelos crespos volumosos, alta, negra, formada por uma das melhores Universidades do país, dominava seis idiomas, tinha experiência com tradução e ensino. Dominava as teorias com uma certeza de que até colocava os avaliadores em dúvida daquilo que sabiam. A mulher cuja noite havia sido uma tormenta mantinha-se de cabeça baixa, apenas anotando, mas por alguns momentos levantou a cabeça para observar a candidata, estremeceu de modo que os colegas perceberam, e preocupados pensaram que a mesma estava sofrendo de um mal súbito. A candidata também percebeu, os colegas interpelaram-na sobre o que estava acontecendo, um deles já estava com o celular na mão para chamar a ambulância, a mulher disse que não era preciso, pediu licença e foi ao banheiro.
 Enquanto isto, as entrevistas continuavam. O  segundo colocado, uma mulher, cabelos lisíssimos, bem maquiada, alta, formada também em uma boa universidade, com um domínio impecável do francês, língua a qual a primeira colocada dominava também muito bem, enquanto esta candidata começou a dizer dos amigos que tinha dentro do ambiente acadêmico, teóricos de forte influência, a mulher retornava ao posto na banca de avaliação e conseguiu acompanhar a manifestação de  admiração dos colegas pelos “conhecidos”  da segunda colocada, um dos professores da banca a convidou para que depois tomassem um café independente do resultado do concurso, talvez ela poderia se tornar uma professora convidada da casa, pois sentia que os objetivos intelectuais dos dois estavam em sintonia e queria uma perda social se ambos não se permitissem estabelecer trocas.
O último colocado, o da Sorbonne, homem, alto, cabelos enroladinhos, um sorriso chamativo, falou sobre o tempo que estudou em Paris e demonstrou conhecer grandes intelectuais franceses e ter por eles amizade e que uma parceria com a Sorbonne seria algo bem bacana para faculdade e que ele estaria disposto a ajudar nisto, os professores ficaram admirados, o avaliador que havia feito o louvor ao jovem na reunião antes das entrevistas cutucou discretamente outro colega, numa linguagem sutil que deixava bem claro que o terceiro candidato deveria ser o escolhido. Fim da entrevista, a reunião para a decisão seria no dia seguinte.
A mulher cujo pesadelo parecia ter ocorrido a luz do dia, despediu-se e saiu, um colega perguntou se queria que a acompanhasse já que não estava se sentindo bem, agradeceu, e disse que era um início de virose. No elevador, a mulher suava, a primeira colocada era a mulher do seu pesadelo, quis compreender porquê ao invés da sua própria imagem era a daquela mulher que aparecia no rio que olhava. Sentiu-se louca, desmarcou o almoço com a amiga que também trabalhava na Universidade, e informou que iria para casa e que não retornaria  mais naquele dia ao trabalho. Em casa tomou um banho frio, usou o aparelho medidor de pressão, tomou um calmante. Tentou entender o pesadelo e a primeira candidata a qual só conheceu naquele instante. Adormeceu durante a tentativa.
Despertou antes do despertador tocar,  se arrumou, ficou se organizando para o trabalho pela manhã. Pegou o celular, inúmeras mensagens a serem respondidas, respondeu algumas. Teria que dá aulas a tarde, folgando a noite e na manhã seguinte. Chamou o táxi, a caminho do trabalho se convenceu que aquilo era tudo uma bobagem, a mente humana ainda tem muito que ser estuda. Ao chegar os colegas perguntaram como estava, pegou uma xícara café  e um bolo que haviam providenciado para a reunião, enquanto respondia que estava tudo bem. O chefe da comissão garantia que não iria ser demorado aquele momento.
Os diálogos iniciaram. A maioria dos homens da banca começou a dizer que a segunda candidata teve um desempenho incontestável da entrevista, postura de grandes profissionais.  O avaliador que havia convidado a tal candidata para um café, realmente saiu com ela, ao invés de café, ambos optaram por  um drink, a candidata dizia o quanto queria a vaga, o professor avaliador, compreensível e doce, disse que ela tinha tudo para conseguir, só dependia do consenso da banca, pois um voto a favor ela já tinha e começou a expressar uma série de argumentos vazios e intelectuais acerca do que a candidata havia falado na entrevista, a candidata ficava surpresa pois não havia percebido que tinha ido tão bem e agradeceu a avaliação. Depois dos drinks, até o tinha seguinte, candidata e avaliador realizaram muitas trocas, trocas intensas.
Também surgiram falas que depreciava a primeira candidata que não conseguia se quer ficar tão apresentável como a segunda candidata. Alguns chegaram a acreditar que algumas informações do currículo da mesma tivessem sido falsificadas, e trataram de verificar durante a reunião, entretanto não acharam provas o suficiente para a deslegitimação. O último colocado, o da Sorbonne, também foi extremamente elogiado.  Naquela banca eram três mulheres, a mulher do pesadelo do rosto que não era o dela e mais duas professoras.  As outras duas professoras elogiavam a Sorbonne como se a instituição tivesse se personificado na figura do último candidato. A professora do rosto que se refletia errado no pesadelo fez ponderações de  que o currículo da primeira candidata como o desempenho da mesma  na avaliação foram ótimos, e que devido ao mau estar não pode acompanhar toda a entrevista, mas o que pode  acompanhar  viu extrema coerência. No fim, por maioria dos votos, o da Sorbonne foi aprovado, por causa das influências que poderia trazer a faculdade. Assim que saiu o resultado, a primeira candidata abriu um processo administrativo solicitando a revisão do resultado alegando fraude.
O candidato que foi aprovado, manifestou que era sempre assim, o povo não aceitava perder, e que ele tinha muito mais competência e que a colega não sabia reconhecer isto e ficava com se vitimizando, algo  que não era saudável para ninguém e que a instituição era uma instituição justa. Os professores da banca de avaliação ameaçaram processar a candidata por difamação e foram fervorosos em seus discursos sobre a ética daquela faculdade. O professor que tomou alguns drinks com a segunda candidata a  consolou dizendo que coisas melhores surgiriam e que ele a ajudaria com indicações à amigos de outras Universidades, mas que iria sugerir o nome da mesma para ser professora convidada daquela faculdade e que poderiam publicar vários artigos juntos. A segunda candidata abraçou o forte, agradecendo tamanha generosidade.
No fim do dia, depois da rotina cumprida, a mulher chegou cansada em casa, pediu a comida pelo delivery, respondeu alguns e-mails. O cansaço ficou mais forte e adormeceu. E caminhava em direção do mesmo rio, olhou, viu a imagem, tocou a água para que a imagem desaparecesse, o rosto se mexia nas águas, mas continuava lá. Não era ela, disto sabia, deixou de ser um pesadelo. A primeira colocada, uma das candidatas da vaga de professor, não conseguia compreender, por que a imagem de uma integrante da banca avaliadora estava ali. Mas sabia que eram quase iguais, mas não eram iguais.  O sonho ocorria com certa frequência, apenas contemplava aquela imagem na água, só naquele dia da entrevista soube quem era. O susto foi grande mais conseguiu disfarçar. Acordou, rindo, como sempre riu.


Juliana Costa  02/12/2017 JF/ MG 



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