BRANCO DE ALMA NEGRA
Nasceu em uma família cujo nome já se sabe a procedência,
sua tataravó, Dona Inácia era o diabo em pele branca arrancava os dentes das
pretas escravas como quem não fazia valer a missa que ia aos domingos. Seu
Tataravó, Dom Tavares era um senhor de respeito na comunidade da província, o
terror nas senzalas, onde que quase religiosamente ia tirar nas meninas
pretinhas a sua cura da doença sexual que tinha, nada melhor do que virgens,
violentava-as como se já tivessem tudo desenvolvido em seu interior, porém muitas
sucumbiam a brutalidade, outras perdiam a capacidade de falar e outras choravam
por dias, até que Dona Inácia não aguentando mais o chororô as colocavam no
tronco enquanto as sobrinhas e filhas de Inácia brincavam com suas lindas
bonecas loiras.
Apesar de ter nascido nesta família, algo de novo foi
descobrido quando alcançou a idade da consciência das coisas. Miguel aos 14
anos começou a dizer-se negro, para a tristeza de seus familiares que como
herança familiar receberam muito mais que bens materiais. Embora estudante de
escola particular, Miguel fazia questão de se enturmar com os jovens da escola
pública que fica próxima da onde estudava. Sua mãe, desaprova tal ação, embora
não sendo ouvida, proibiu o filho de levar para casa aquelas crianças desconhecidas,
porém quando o jovem levava algum colega de colégio, não era tão estranho
assim, apesar de sua mãe nem imaginar quem era seus pais.
Aos 17 anos, se preparava para o vestibular, os pais
pagaram o melhor cursinho pré-vestibular da cidade, se dedicava horas e horas
de estudo, os amigos do colégio, os da escola pública ao lado, foram aos poucos
perdendo contato, mas os de sua escola constantemente estavam nos mesmos
espaços sociais que ele, festas de gente importante da cidade ou nas missas que
a família ia todos os domingos, coisa que nenhuma geração deixou de seguir.
Queria fazer medicina, nos jantares em família explicitava que queria ajudar
quem não poderia pagar um bom médico, as tias mais graciosas vibravam diante do
tal intento do jovem, mas o pai rígido dizia que caridade não sustentava
ninguém, nem mesmo o padre.
Finalmente, conseguiu a tão desejada vaga para o curso de
medicina, estava feliz, no primeiro dia de aula era o jovem mais animado da
turma, ria a toa. No início da aula, observava todos os seus colegas,
considerava que todos pareciam iguais, iguais perante a Deus como a mãe sempre
lhe dizia. Entretanto, uma tristeza surgia, porque não havia negros em sua
turma? Ao chegar em casa mais branco do que o normal, contou a mãe sobre sua certeza.
A mãe informava que nem todo mundo queria fazer medicina, como exemplo usou as
filhas e filhos de Maria, a faxineira da casa, que preferiram trabalhar do que
estudar. O médico aprendiz se sentiu mais aliviado, após a explicação da mãe.
No outro dia de aula, nos espaços de integração da
Universidade, começou a ver pessoas negras, aproximou simpático para conversa,
em pouco tempo conquistou a simpatia da maioria. Começou a andar com eles,
abandonou o cabelo penteado de lado que a mãe o acostumou desde de pequenino,
começou a participar de eventos que colocasse em questão as desigualdades
sociais. Com uma retórica magnifica, discursava pela igualdade, aos poucos lia
livros de grandes intelectuais negros, como Fanon, Hall, Bhabha, etc. Com um
passar do tempo começou a falar publicamente em nome da coletividade a qual
dizia ser parte, seus discursos sempre se iniciavam “ Nós negros...”. Se o
público era majoritariamente branco o riso tomava conta do lugar, se era
majoritariamente negros a revolta gritava das poltronas. O jovem não entendia
porque os irmãos se sentia revoltados, até que um dia alguns pararam para
explicar que o racismo no Brasil não era coisa de alma, era coisa de pele.
E por ser um racismo pautado na pele, ele não seria
reconhecido como negro, porque socialmente não é visto e nem passa pelas mesmas
situações que um negro. Caso quisesse somar na luta no combate às desigualdades
raciais, precisaria reconhecer o seu lugar racial que a sociedade e a história
deixou como seu legado. O menino informava que não se sentia branco, que se sentia
negro, muito negro, mas não foi compreendido.
Em casa, olhou a certidão de nascimento, viu que era
considerado branco de nascença. Começou a não comer, adoecia, a mãe chamou o
médico, o psicólogo e o psiquiatra. O médico disse que biologicamente estava
tudo normal, o psicólogo alegou que era apenas o psiquiatra que poderia
resolver o problema, a mãe desesperou, o psiquiatra disse que seria necessário que o jovem
tomasse remédios , pois isto poderia ser um início de depressão, pois quando se
estuda muita acontece dessas coisas, o rapaz fazia uso constante de
medicamentos, parecia um morto – vivo ou um vivo- morto, não se podia bem
definir.
Em uma ocasião, no seu quarto ano de faculdade, no
intervalo da aula, avistou um rapaz negro em roda com os rapazes brancos.
Aproximou-se em pois a conversar e parabenizou o jovem negro por querer fazer
medicina. Aos poucos foram se tornando amigos, seu nome era Josué. Sua mãe, Isabel, trabalhava como contadora, viajou o mundo, conhecia todos os países da Europa,
mas nunca foi a nenhum país africano. Miguel falou de racismo a Josué, o rapaz
disse nunca ter sofrido, que apenas foi alvo de falta de educação de muitas
pessoas que o confundia com o porteiro do prédio onde morava ou dos seguranças
que o perseguia no Shopping, aliás Josué acreditava que racismo no existia. E
se via como ser humano, não como negro.
Miguel ficou com vergonha de dizer que era negro, pois
poderia receber os risos do colega ou assustar Josué. Mas sempre que tinha
oportunidade contava para Josué o que era racismo e o que era as desigualdades
no Brasil. Miguel também afirmava que nunca sofreu racismo por mais que se
considere negro, mas sempre viu os colegas da escola pública perto da onde
estudava ser abordados violentamente pela polícia. Enquanto seus colegas
brancos, fumavam maconha na porta da escola e a polícia passava com
cordialidade.
Josué falou a Miguel que a alma não tinha cor, que a alma
de todos era transparente. Miguel se irritou, disse que apesar de negro Josué
não sabia de nada e se afastou. Nas férias, os pais de Miguel o presentearam
com um carro importado, Miguel resolveu ir na casa de Josué convidá-lo para dá
uma volta na cidade. Josué parabenizou o amigo pelo carro, pediu para dirigir,
Miguel permitiu passaram a tarde visitando os lugares onde os jovens da cidade
se encontravam.
Certa vez, Josué havia esquecido um livro em casa, que era
necessário para a aula seguinte, Miguel ofereceu o carro para que o amigo fosse
rápido em casa a tempo de chegar para o início da aula. Josué agradeceu a
generosidade do amigo. Foi em casa, ao retornar a faculdade, uma viatura da
polícia o seguia, não fizeram sinal para que parasse, então Josué prosseguiu. A
viatura ligou a sirenes, Miguel deu espaço para que ultrapassagem, talvez fosse
uma emergência. A viatura ultrapassou, um policial olhou estranhamente, com a
arma na mão pediu para encostasse. Josué apresentou os documentos, informou que
o caro era de um amigo.
Mas a explicação não foi ouvida, pediram-lhe a carteira de
identidade, algemaram-no e o levaram à delegacia sobre a acusação de roubo.
Josué ligou para a mãe que chegou na delegacia para dá esclarecimentos, foi
liberado, porém teria que comparecer ao tribunal já que segundo o policial o
jovem desacatou a autoridade, mesmo dizendo que era mentira, o delegado disse
que não recebia para aceitar desaforo de malandro. Perdeu a aula, depois Miguel
foi a delegacia recuperar o carro apreendido.
Uma semana depois, Miguel e Josué conversaram sobre a
situação. Miguel disse que era racismo, dessa fez Josué acreditou. Mas não
entendia porque o fato dele ter a pele escura o faria um ladrão? o rapaz ficou
triste por algumas semanas, mas o sentimento de pertencer a raça humana o fez
esquecer do ocorrido. Em seu aniversário, o pai lhe deu também um carro. Chamou
os amigos para dá uma volta, Miguel não estava na cidade para compartilhar do
momento. Os quatros amigos de Josué ficaram felizes, eram amigos de infância que
brincavam na rua do bairro onde a sua Vó Lena morava.
Vó Lena era neta de pessoas escravizadas, guardada os
costumes passados de geração em geração, para tudo que era mal, Vô Lena tinha
remédio,sua Vó foi escrava,chama-se Agbara, nascida em 1850, propriedade de uma
família portuguesa Passou para mãe de Lena, Ana, tudo que podia deixar sobre a
família. Diziam com frequência que um dia a dor iria passar e que teria Ana uma
possibilidade de viver mais feliz, embora Ana tivesse nascido em 1910, sentia
ainda que a sociedade inteira a via como escrava, não como um ser livre.
Quando Lena nasceu, Ana tinha 25 anos, o pai nunca quis assumir a
responsabilidade da criança, mas Ana trabalhava muito para que nada faltasse,
educou Lena com muito amor, morreu quando a filha tinha 35 anos e chegou
conhecer a neta, Isabel, filha de Ana.
Josué ouvia as histórias da avó sobre a escravidão, mas
pensava que era coisa de gente que alcançava avançada idade. Naquele dia em que
a polícia o parou simplesmente por está dirigindo o carro de um amigo, lembrou
do que Vó Lena dizia, que todo preto no Brasil é culpado, mas que o crime
ninguém sabia, mas todo mundo inventava. Agora, ao lados dos amigos que nunca
havia andado toda a cidade ficavam distraído na alegria de ver todos sorriem. Ao
entrar na avenida principal, um policial olhou desconfiado, sem sirenes começou
a seguir o carro, Josué não percebeu, para poder dá passagem, por motivos que
ninguém ainda soube, os amigos só conheceram um pouco da cidade, o carro foi
alvejado por inúmeros tiros, os noticiários informaram que era suspeita de
drogas, o delegado informou o que os polícias haviam relatado, os jovens haviam
ultrapassado o sinal, se negando a parar quando foram solicitados.
Miguel foi ao enterro, percebeu que sua alma negra era a
prova de balas, mas que os corpos negros não.
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