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YAMÁ E OS DOMANOVISKIS

Aprendeu com a mãe a colocar uma vela acessa em um lugar mais alto que ela, juntamente com o um copo d’água, assim alinhava a ordem dos pensamentos, sentia novamente a paz quando a mesma era dela roubada. A vida exigia dela tranquilidade, todos podiam ter o seu momento de ira, de impulsos, mas aprendeu que ela não poderia, um simples questionamento já era lido como um ato violento, a mãe também ensinou a abstrair as ofensas, pois assim Cristo fez e ensinou. Por obrigação a isto atendia, quando emergia no mundo dos brancos perdiam o sorriso, o brilho nos olhos, desligava a humanidade, pois a patroa não gostava, pois acreditava que era dá intimidade para quem não era da família. Aprendeu a ser mais um objeto da casa, mas um objeto que se tinha vergonha de mostrar. Trabalhava a seis anos naquela casa, a dois iniciou a universidade. Nesta ocasião, para  patroa havia pedido permissão para estudar, mas no início a mulher não cedia, iria demiti-la, mas a moça necessitava do emprego para ajudar com as contas da família.
Quando foi solicitar a permissão da patroa, já havia sido aprovada em um curso de arquitetura. Senhora Domanoviski tomou um susto com a notícia já que era arquiteta, como a sua família era, quando se casou com o Senhor Domanoviski, médico e de família de médicos, quebrou a tradição familiar. Ao ouvir a empregada doméstica dizer que iria cursar arquitetura sentiu-se extremamente ofendida, isto se percebia em seu rosto. O filho Juninho, há anos, tentava ingressar no curso de arquitetura ou de medicina, para nenhum dos dois teve a devida sorte, a mãe queria que ele cursasse em uma instituição de grandes referências como era aquela que Yamá, a empregada, pedia autorização para cursar.
Yamá trabalhava mais de oito horas por dia, começava as 06h e terminava as 19h. Embora a carteira de trabalho registrasse as horas justas, a moça exercia as extras horas injustas, mas como precisava do emprego, não questionava a patroa, esta que nem um acréscimo realizava mensalmente ao salário, apenas de vez enquanto quando havia alguma visita que percebia a presença da moça além do horário. A jovem necessitaria sair mais cedo para poder chegar as 18h na universidade que ficava a 45 minutos da residência Domanoviski. A senhora cedeu ao pedido, solicitando que Yamá chegasse mais cedo para cobrir o horário. O que reduziria apenas o tempo de sono de Yamá.
A boa patroa intensificou as tarefas da moça, pensava que assim faria com que ela desistisse da ideia de exercer a mesma profissão que ela no futuro. Corpo cansado, mente enfraquecida... Mas Yamá resistia silenciosamente as estas tramas sutis. Quando a patroa não estava, arrumava mais rápido alguns cômodos da casa, aí tirava algumas horas para as tarefas acadêmicas. A patroa sempre tinha pela manhã ou pela tarde reuniões demoradas com clientes, era nestes horários que Yamá lia os textos teóricos e realizava os trabalhos acadêmicos. Adorava observar o modo como alguns prédios e casas eram construídos, lia as revistas caras de arquitetura que a Senhora Domanoviski assinava, isto ajudava a entender o que os professores falavam, pois citavam coisas que pensavam que os alunos não compreenderiam, muitos assustavam quando Yamá manifestava saber do que estavam falando.
A jovem arquiteta em formação não compreendia  porque a beleza era associada ao luxo. Em seu bairro tinha casas lindíssimas onde as mulheres mais velhas plantavam roseiras no pouco de terra que havia nas calçadas ou improvisavam bancos com troncos de árvores na porta onde que sentavam para observar o movimento, mas esta beleza não tinha luxo, principalmente quando era desmanchada pelos repentinos tiroteiros que faziam predominar o vermelho e a lágrima como tintas que pintavam a paisagem. A vida corria para Yamá, conquistar o sonho de se formar e ter um emprego seria um ponto de freá-la bruscamente. Levou os cinco anos de Universidade como quem andava em uma cotidiana batalha.
Fez o convite aos patrões para formatura, solicitou demissão, iria se especializar mais na área de arquitetura, conseguiu um mestrado onde receberia ajuda financeira para cursá-lo. Senhora Domanoviski não havia feito pós- graduação, pois a empresa de arquitetura dos pais era muito conceituada e consagrada no mercado. Sentiu novamente o que havia sentido antes, tristeza pelo sucesso de Yamá. Enquanto Juninho curtia eternas férias na Europa, a mãe disto se vangloriava do filho não precisar suar para as coisas conquistar, parecia que os Domanoviski eram alérgicos ao suor, nada podia fazer esforços, deram sorte que um copo de água é muito leve quando é levado a boca.

Embora o convite foi feito, nenhum dos patrões apareceu na formatura. Yamá e a família estavam feliz, festejando como se a única arquiteta da família fosse o melhor presente do mundo. Dois dias depois da formatura, o bairro todo se organizou para também comemorar. Yamá começou a arquitetar o futuro, sem medos, mais devagar, para que se pudesse recuperar a beleza que por muito tempo não conseguiu parar para ver. E quando parasse novamente de ver a beleza, colocaria em um lugar maior que ela uma vela e o copo d’agua para harmonizar os sentidos, fortalecer os sonhos. Pois pela primeira vez sentiu que o que era e seria não dependia de um projeto alheio a sua consciência.


Juliana Costa 26/01/2016 JF/MG 

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